#PETRUS – CAPÍTULO 44
12/07/2018
Certas lembranças, por mais doídas e esmagadoras que sejam, nunca te deixam. Você pode colocar todo o seu esforço, empenho e vontade em deixá-las para trás, mas elas não se vão. Elas te pertencem, e algumas, como no meu caso, são carregadas literalmente na pele.Eu não queria contar hoje para a Ane sobre o meu passado. Na verdade, eu não queria contar nunca. Não porque seja algo que ela não vá conseguir conviver; apesar de todos os pesares, eu era apenas a vitima.Eu sempre fui a vitima.O meu medo era que isso mudasse a visão que ela tinha de mim. Ninguém sabia daquilo por que eu não queria os olhares de pena, as condolências, o alarde. Eu só queria paz. Eu lutei tanto por paz e contar á alguém todos osmomentos terríveis que eu passei, seria frustrar meus planos e voltar á estaca zero.Mas ela merecia saber e se ela teria que saber um dia, que fosse logo. Talvez fosse o último passo para colocar uma pedra em cima de tudo isso e seguir em frente.Já estávamos deitados quando eu decidi que era a hora de explicar pra ela o por que das minhas cicatrizes.- Amor - eu levanto as costas me ajeitando na cama. Bato a mão ao meu lado e ela entende que é para se aproximar. - Você quer saber o motivo das minhas cicatrizes, não quer?- Petrus, eu não quero parecer intrometida. Eu só me preocupo, de verdade ela me olha com medo de ser julgada. Eu nunca pensaria mal dela.- Eu sei que você não é intrometida - eu a puxo para meu peito, enquanto passo as mãos por seus cachos, acompanhando as ondas com os dedos - Mas eu acho que preciso te contar, de qualquer forma. Se vamos começar uma relação, ela precisa ser transparente.- Tudo bem, se você acha que eu posso saber - ela encolhe os ombros - Não quero te obrigar a nada.- Queria não ter que te dizer isso - eu suspiro - Mas ás vezes, os pesadelos são reais.Ela não me responde nada, então percebo que é sinal para que eu continue. - Quando minha mãe era nova ainda, o pai dela prometeu ao pai do meu pai que eles se casariam. As duas famílias tinham dinheiro e precisavam se juntar, para fortalecer mais as relações de poder. Ela nunca o amou de verdade. Ela era apaixonada por outro rapaz e bem... todo mundo meio que sabia disso.Olho para seu rosto, contemplando sua expressão de atenção. Imagino que ela deva estar se perguntando o que isso tem a ver com as minhas cicatrizes.-Enfim... eles se casaram e nasceu o Dimitri. Mas minha mãe nunca esqueceu o verdadeiro amor dela...eles ainda se viam ás escondidas e ela engravidou dele. Eu sou filho desse cara. Quando eu nasci, ficamos apenas alguns anosna Grécia e o escândalo estourou. O meu pai, ou pai do Dimitri no caso, não aguentou todos os boatos e fofocas e nos trouxe para o Brasil. Conforme eu crescia, ele via que eu não tinha os traços dele... e ele foi me odiando cada diamais e mais. Ele nunca foi bom na realidade. Sempre estúpido, bêbado e agressivo, mas não passava disso. Quando eu tinha quatorze anos, eu e minha mãe estávamos voltando de um passeio quando o acidente aconteceu. Eu estava no carro, Ane. - vejo sua boca formar um pequeno O de espanto, mas prossigo. Se eu ia falar sobre isso, precisava ser de uma vez por todas.- É por isso que você tem essas cicatrizes? - ela praticamente sussurra, com medo da resposta.- Não - eu beijo o topo da sua cabeça. - Quem armou para que ela morresse foi ele... o pai do Dimitri, que eu também chamava de pai. Ainda chamo, ás vezes. Maldita força do hábito. O objetivo era matar nós dois. A minha mãe possuía a maior parte das ações da PrimeStan. Acabar com ela e comigo era se livrar dos dois motivos de desonra dele e ainda ficar mais rico. Mas eu fiquei e acabei frustrando seus planos, se é que você me entende.- Amor... - ela se endireita na cama - Eu não fazia idéia.- Como na época o acidente dela foi muito comentado na mídia, e houve suspeitas de sabotagem no carro, ele percebeu que tentar acabar comigo de outra forma seria dar muito na cara. Então eu continuei morando com ele ecom Dimitri, mas ás vezes eu preferia ter morrido naquele acidente.- Porque o Dimitri te odeia tanto, Petrus?- Eu nunca soube muito bem, na verdade. Mas ele disse que eu roubei o único pedaço de céu que era o inferno daquela casa. Acho que ele me odeia por eu ter sido o motivo da morte dela, Ane. Ao invés de odiar quem a matou, ele preferiu direcionar o ódio dele á causa... eu, no caso. As vezes eu penso que por pior que ele seja Ane, ele é outra vitima das circunstâncias.- Eu sinto tanto, amor... tanto. - ela me abraça e eu cheiro seu cabelo. Ainda não havia chegado na pior parte.- Quando eu voltei pra casa, ele foi piorando cada vez mais. Bebendo mais, levando vagabundas para casa, se drogando nas festas luxuosas que ele dava na nossa mansão. No começo eu só recebia castigos severos e apanhava muito por qualquer mínima bobagem, mas conforme eu fui crescendo, eu fui desafiando ele cada vez mais. Um dia, uma das vadias com a qual ele estava se relacionando me olhou de forma diferente... eu a rejeitei, e bem, ela disse que eu havia tentado ficar com ela. Porra, eu era quase uma criança. Franzino e sem graça, não sei o que ela viu em mim, mas ele acreditou nela. Foi a gota d'agua pro ódio dele estourar né? Ele me trancou no porão...e inventou uma desculpa de que eu estava viajando pela Europa.- O que? - ela parecia quase não acreditar.- Sim... ele me batia tanto, mas eu não ligava mais pra violência. Eu só odiava ficar amarrado. Havia duas colunas de mármore no meio do porão.Ele me amarrava nelas e eu passava dias e dias daquele jeito. Amarrado, desajeitado, com fome, com frio. Mas o escuro... Deus, como eu odiava o escuro.- Amor...ele é um...- ... Monstro? - dou um sorriso triste ao ver que ela percebeu o obvio - Sim, ele é a escória da humanidade. Eu odeio ele com tudo de mim. - sinto o enjoo subir pela minha garganta, mas eu já estava acostumado a lidar com isso - Um dia, eu tentei me soltar me movimentando pra corda afrouxar, tamanho era meu desespero, então eu acabei comendo esse lado da costela com a fricção. Eu era tão magro e as cordas queimaram minha pele. Eu lembro que ficaram buracos horríveis. Três para ser mais exato. Um buraco para cada volta da corda. Nesse dia, quando ele me viu caído no pé da coluna, ensanguentado e cansado, ele riu. Riu na minha cara... ele estava bêbado, para variar. Me amarrou de novo, cuspiu em mim e disse que eu era a desonra dele. Disse que eu sequer era homem, que eu nunca aguentaria uma mulher daquela e que eu deveria respeitá-lo. Que ele era o macho alfa daquela casa e que eu sempre seria aquilo, um rascunho do meu pai verdadeiro. No dia seguinte, ele voltou lá, me soltou e disse que eu podia sair, contanto que ninguém soubesse o que aconteceu lá durante aqueles dias. Ele disse que eu havia aprendido a minha lição. Mas ele nunca me tratou bem, ele sempre me odiou. Depois que eu cresci, transei com metade das mulheres que o rodeavam, provei a ele que eu era muito mais homem do que ele comendo todas as mulheres que se relacionavam com ele, joguei o nome dele na lama sendo um garoto de programa e deixando todos os amigos poderosos dele saberem e fui viver minha vida, longe dele. O Dimitri cuida da minha parte porque minha mãe deixou essas ações para nós dois e como eu não quero mais ter que encontrar o maldito pai dele, ficou combinado assim. Por mais que ele queira que eu venda minha parte, eu nunca vou deixar ele colocar as mãos no que era da minha mãe. Isso significaria que a morte dela serviu finalmente aos seus interesses.Fechei os olhos brevemente. Eu quase podia reviver todas aquelas cenas."Isso é para você me respeitar... e respeitar ela também. Você ainda nem é homem o suficiente..." Mais um, dessa vez no estômago. Me sinto afundar na coluna de mármore de novo. Naqueles dias, eu só sentia falta da minha mãe e de seu abraço de proteção.- Como você guardou isso pra si durante tanto tempo? - ela me olha, sem entender, me trazendo de volta á realidade.- A melhor saída para não ter seu coração massacrado é fingir que não tem um.Ela voou em minha direção antes que eu pudesse perceber. Me abraçou como se o mundo fosse acabar e senti suas lágrimas molharem meu peito descoberto.Droga, eu temia isso.- Amor... não chora - eu a puxo e enxugo suas lágrimas. - Já passou. Isso é passado.- Como ele pode Petrus? Você era quase uma criança!Ela estava sofrendo com aquilo como achei que sofreria.- Mas acabou. Acabou porque eu percebi quando te conheci que eu não precisava mais nutrir esse ódio por ele... eu troquei todos os meus sentimentos ruins por sentimentos bons. Você me mostrou que a vida ainda pode ser boa - sorrio em sua direção, tentando amenizar seu sofrimento.Eu não quis entrar em detalhes que as torturas eram muito piores do que eu realmente contei... que costelas foram quebradas, que dentes foram perdidos.Ela não precisava saber de cada chute, soco ou tapa. Eu estava enterrando aquele assunto, de uma vez por todas.- Eu estou aqui, amor. Eu sempre vou estar - ela se agarra mais a mim e depois faz algo que eu não imaginava: desce a boca por toda a minha barriga, beijando suavemente cada pedaço meu. Encosta os lábios em minha tatuagem, pressionando suavemente. Era um beijo de cura. - Nunca mais ninguém nos fará mal.- Eu não vou deixar. - beijo seu cabelo enquanto sinto sua boca ainda em mim - Agora você é meu motivo para lutar. Você é meu motivo de viver.
