#CAPÍTULO 9

14/05/2018

Vejo Josias com sua cadeira de rodas na calçada. Pelo seu olhar vejo 
que a Manu já deve ter dito algo.
Estaciono o carro a meio fio e desço.
- A Manu está?
- Está sim Vicente. Ela me contou sobre o ocorrido na sua casa.
- Josias, eu não tive culpa, ela foi entrando... - Sou cortado antes de 
terminar meu raciocínio.
- Vicente, tu é um homem livre, mora sozinho. A culpa não é sua. Tu 
poderia ter trancado a porta, mas a Manu quem não tinha direito de ter 
entrado sem chamar.
- Tudo bem Josias. Eu precisava conversar com ela.
- Ela está lá no quarto. Lourdes foi buscar um lombo para fazer no 
jantar. Você fica para comer com a gente?
- Se não for incomodar...
- Tu é bem vindo aqui meu jovem.
Aceno indo em direção ao quarto. A música do Tim Maia - Eu amo 
você - está tocando baixinho, sendo seguida pela voz desafinada da Manu.
Dou duas batidas na porta e abro.
Ela está sentada na cama com as pernas dobradas e com seu caderno 
rosa nas mãos.
- Vicente - fala colocando o caderno embaixo do travesseiro e 
abaixando um pouco o som da vitrola velha que está do lado da cama.
- Manu, eu só vim me desculpar com você...
- Tu não tem que se desculpar por nada. Eu quem fui entrando na sua 
casa sem chamar.
- Eu deveria ter trancado o portão...
- Tu não me disse que tinha namorada.
- Eu não tenho.
- Mas eu vi você com uma moça...
- Manu, adultos transam. Vai me dizer que ainda é virgem?
Ela ri. Manu tem um jeito espontâneo de rir quando fica nervosa.
- Tu acha que só você é adulto aqui Vicente? Eu já tenho 25 anos.
Claro que já transei. Foi somente uma vez e foi lindo.
- Foi bom? - pergunto.
- O que? - indaga como se não acreditasse no que ouviu.
- Quando você transou, foi bom? - repeti.
- Não acredito que está me perguntando isso, Vicente.
- Manu, você falou que foi lindo. Quero saber se foi bom.
- Foi ótimo Vicente. Tanto que nem precisei sair com mais ninguém 
depois.- 
Você não sente falta?
- Fala sério Vicente. Não estou gostando do rumo dessa conversa.
- Tudo bem, Manu. Você deve ser aquelas garotas que ainda 
acreditam em príncipes montados em cavalos brancos e amor a primeira 
vista.
- Olha Vicente, você nem merecia uma resposta, mas eu vou te dar.
Ao contrario do que tu pensa, eu não acredito em amor a primeira vista. Eu 
acredito em tesão à primeira vista, paixão, admiração, ódio... mas amor não.
Amor é algo que se constrói, e prédios sem estruturas caem.
- Meninos - chamou Lourdes entrando no quarto. - A comida já 
está pronta. Vamos comer antes que esfrie. Manu, fiz sua comida favorita, 
mingau de fubá com lombo desfiado. Vicente, seu lugar à mesa está 
arrumado.
- Já estamos indo mãe.
Lourdes sai do quarto e me deixa com a maluca.
- Vicente, eu gosto muito de você, mas não quero que toque nesse 
tipo de conversa de novo. Eu já aprendi que não devo entrar na casa de um 
homem solteiro sem chamar.
- Manu, eu não quero que fique esse climão entre a gente.
- Vicente, tu não me deve satisfações de nada. Me desculpa por ser 
entrona.-
Tudo bem Manu - digo indo abraçá-la. - Esquece o acontecido de 
hoje. Vamos jantar que o cheiro da comida da sua mãe está revirando meu 
estômago.
Jantamos rindo demais das piadas do Josias. Ele mesmo goza de sua 
condição de cadeirante, tirando sarro de si mesmo e contando como conheceu 
a Lourdes ainda no colegial.
- É Vicente, não foi fácil convencer a Lou de que eu era o homem da 
vida dela - fala olhando para a esposa. - O truque de mestre foi a cantada 
infalível. Tu se lembra amor?
- Claro que me lembro Josias. Tu não vai contar isso para eles não é?
- Como que vocês nunca me contaram essa história? Só por que o 
Vicente está com a gente, vão me contar como nasci? - Manu fala dando 
aquela sua risada escandalosa.
- Era uma tarde de sol, - Josias começa a narrar - a Lourdes estava 
em sua rodinha de amigas, e eu só tinha olhos para ela. Já havíamos trocado 
alguns olhares e papeis de bala. - Manu revira os olhos e Josias a pega no 
flagra. - Sim minha filha, naquela época as balas vinham com bilhetinhos.
- Que coisa mais cafona...
- Não fala isso minha filha - diz Lourdes. - Você ainda não ouviu a 
cantada infalível.
- Confesso que até eu estou curioso para ouvir essa cantada - digo.
- Bem, me deixa continuar. Lou estava com um vestido florido até a 
altura das canelas e com duas tranças caídas sobre os ombros. Eu tomei 
coragem e a chamei. As amigas delas começaram a rir e a incentivaram a vir
até onde eu estava. Assim que ela veio até onde eu estava, percebi que não 
podia mais correr. Então tomei um ar e falei de uma vez: Você é a garota 
que aparece no livro dos recordes como a mais bonita do mundo, né?
- E o que a mamãe falou?
- Você se lembra da sua resposta Lourdes? - Pergunta Josias.
- Claro que me lembro meu amor. Eu respondi: Sim, na mesma 
página em que você aparece como o sedutor mais original.
Caímos na gargalhada. Com certeza essa era a cantada mais horrível 
que já ouvi. Mas quem diria que daria certo e acabaria em casamento?
Agora sei o porquê da Manu ser tão maluquinha.
- Eu amei a história.
- Confesso que gostei também. Senhor Josias era bom de lábia - 
falo.
- Era não meu jovem - diz estufando o peito. - Ainda sou. Lourdes 
quem o diga.
- Gente vocês estão assustando o Vicente desse jeito.
- Manu, nada me assusta mais nessa casa do que você - digo rindo, 
sendo acompanhado por Josias e Lourdes.
- Tu é um... estrupício!
De onde essa criatura tirou esse xingamento? Não consigo parar de rir e 
vejo a Manu ficando vermelha como pimenta malagueta.
- Calma crianças. - Josias intervém - Quando a implicância é 
demais, é porque tem amor na jogada.
- Bah, que amor o quê. Vicente é só um amigo que não está se 
mostrando tão amigo assim.
- E para dizer a verdade, a Manu nem faz meu tipo - rebato.
- E qual é seu tipo Vicente? Loira falsa, com peitos gigantes e cara de 
vadia? Obrigada por não ser o seu tipo.
- Não foi isso o que eu quis dizer...
Nem tenho tempo de terminar, ela já se levanta da mesa e sai em 
direção ao quarto. Ela bate a porta e Lourdes me dá um olhar como se pedisse 
desculpas.
- Bem, acho que essa é a minha deixa para ir para casa. Agradeço 
pelo jantar, a comida estava maravilhosa.
Levanto da mesa ao mesmo tempo em que Josias arrasta sua cadeira até 
onde estou.
- Vicente, sei que tudo isso pode parecer estranho para você. Eu nem 
deveria estar te contando algo tão intimo sobre a minha filha.
- Não precisa me falar nada Josias. Vocês não me devem satisfações 
sobre nada.
- Eu sei, mas eu preciso meu jovem.
Dou um sinal de positivo com a cabeça e seguimos até o portão.
- Emanuelle não é uma má garota e nem uma má amiga, acontece que 
algumas coisas que ocorreram num passado não tão distante e acabaram a 
deixando assim. - Ele engole seco e continua. - Manu foi noiva de um 
rapaz que acabou a abandonando no altar. Ela sempre foi cheia de vida, de 
planos... Marcelo a fez investir tudo o que ela ganhava, em uma festa de 
casamento que seria memorável. Após tudo acertado, chegou o grande dia.
Até eu estava animado para entrar com minha filha na igreja... eu ainda 
andava... mas, chegando lá, o noivo não se encontrava no local habitual.
Esperamos por cerca de uma hora e meia, até que nos demos conta de que 
Marcelo não viria. A partir desse dia, Manu decidiu viver uma vida 
desapegada. Fala o que vem a telha, age como uma adolescente.
- Nossa, Josias. Eu não sabia...
- Manu hoje é quem sustenta a nossa casa. Às vezes eu acho que isso 
trás a ela muita responsabilidade e um pouco de desgosto.
- Manu ama vocês, Josias. Isso jamais traria desgosto a ela.
- Ela odeia trabalhar na BioFort, Vicente. O sonho dela era ser 
advogada, mas por causa dessa maldita doença que me acometeu, ela se 
submete a trabalhar lá. O Bernardo Salles, sabe quem é não é?
- Sei sim.
- Ele não a deixou fazer somente um turno fixo. Manu teve que 
trancar a faculdade para poder trabalhar. Essa gente rica trata os funcionários 
como escravos.
- Vou ver o que consigo fazer para ajudar a Manu. Posso tentar falar 
com alguém de lá... quem sabe não consiga algo.
- Eu agradeço Vicente e peço para que continue cuidando da minha 
menina.
Despeço-me com um aperto de mãos.
O caminho até em casa foi curto, literalmente, mas me deu tempo de 
pensar em tudo o que Josias me falou.
Manu então já foi noiva... aquele M que vi em seu caderno rosa infantil, 
era de Marcelo então. Ela me odeia, quer dizer, odeia o Bernardo. Todos lá 
me odeiam. Eu sou o Bernardo...
Decido passar a noite no meu apartamento. Quem sabe a Marli não me 
ajuda a pensar em algo.
Sete e quarenta e eu já estou pronto. Bernardo Salles vice-presidente da 
BioFort.
Passei a noite pensando no que a Marli me disse: "Se você quer mesmo 
ajudá-la, pode a colocar no turno que ela precisa, afinal, você ainda é o 
vice-presidente daquela joça..."
Marli e seus conselhos, sempre me ajudando nos piores momentos.
Saio de casa e entro no meu carro. O cheiro do banco de couro é como 
bálsamo em minhas narinas.
Embora seja domingo, a empresa trabalha até o meio-dia. Quero passar 
no RH e pedir para que fixem a Manu somente no turno do dia.
Paro o carro na minha vaga e para a minha surpresa vejo a Manu saindo 
de dentro do escritório. Mas o que será que essa maluca veio fazer aqui?
Espero que não tenha vindo pedir a conta.
Espero ela sumir do meu campo de visão e desço do carro. Passo pela 
porta de vidro sem me dar conta de quem está falando comigo.
- Bom dia senhor Bernardo.
- Só se for para você, pois meu dia já começou ruim. Peça para a 
Laura do RH subir até a minha sala.
- Sim senhor.
Pego o elevador tentando acalmar a respiração. Mas que diabos essa 
louca estava fazendo aqui?
Luísa já está a minha espera assim que as portas do elevador se abrem.
- Bom dia Bernardo. Como fui informada de que o senhor estava aqui 
no prédio, tomei a liberdade de separar alguns papéis que necessitam de sua 
assinatura. Estão sobre a sua mesa. Coloquei lá também a pauta da última 
reunião a qual você não pôde estar presente. O senhor Júlio também me ligou 
e solicitou que o senhor passasse na sala dele antes de ir embora.
- Acabou?
- Sim.
- Obrigado. Estou esperando a Laura do RH. Assim que ela chegar
peça a ela para entrar. Me trás um café bem quente e sem açúcar.
- Ok.
Que mulher tagarela.
Duas batidas na porta e Laura já estava na minha sala.
- Bom dia senhor Bernardo. O senhor pediu para me chamar?
- Laura, o que a Emanuelle Fernandes estava fazendo aqui?
- Ela veio solicitar uma mudança de setor, parece que não está se 
dando bem com um novato.
- Que novato? Quem está a importunando?
- Parece que é aquele Vicente. O Lúcio tem reclamado muito dele 
também, mas o senhor Júlio quer que espere até o fim da experiência.
- Laura, ligue para a funcionária e diga que a fixará no período 
diurno. Veja quem quer trabalhar em horários específicos e fixe-os também.
- Mas nós trabalhamos com rodízio...
- Laura, eu sei como a gente trabalha. Faça somente o que eu pedi.
- Tudo bem Bernardo.
Ela sai da minha sala e eu a sigo, mais tomo o rumo da sala do meu pai.
Entro sem bater.
- Oi filho.
- A Luísa falou que você queria falar comigo.
- Você já descobriu algo sobre os pedidos de demissões em massa?
- Muito mais do que você possa imaginar.
- O que motiva os funcionários a pedirem a conta então?
- Além dos uniformes horrorosos, o calor infernal e EPI´s velhos?
Ele não reponde, mas vejo que espera o restante da minha conclusão.
- O motivo maior dos pedidos de demissão dos funcionários, não foi 
nada disso que citei acima.
- Se não é isso, o que é então? - Pergunta.
- Eu.

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