#CAPÍTULO 6
11/05/2018
Já são quase seis horas e meu pai não atende meus telefonemas. Não quero voltar para aquela porcaria de empresa, quero só meu dinheiro.A destrambelhada da Emanuelle me mandou um SMS dizendo que o Lúcio vai dar meu endereço a ela. Eu nem me lembro de ter dado o endereço do Vicente.Quero meu carro. Não vou ficar andando com essa charrete.Ligo de novo para o meu pai e dessa vez ele atende, porém fica mudo do outro lado.- Não vai falar nada?- Não tenho nada a dizer pra você, Bernardo.- Quero meu carro.- Ele está na sua garagem.- Estou falando do meu carro.- O seu carro está na vaga.- Então está bom.- Olha, o Lúcio veio aqui pedir seu endereço ao RH, pois parece que tem uma amiga sua querendo te visitar.- Eu não tenho amigas.- Isso não é novidade pra mim e nem da minha conta. Dei um endereço ao RH. Se você tiver interesse, acabei de te mandar o endereço pore-mail. As chaves da casa estão embaixo do tapetinho.- Eu não já acabei com essa palhaçada?- Bernardo, a sua amiga quer visitar o Vicente e não você. Tenho até pena da criatura que perde seu tempo precioso, indo atrás de quem não vale nem um segundo.- Eu não vou.- Pois não vá. Ela sairá da empresa daqui dez minutos.Desligo o telefone olhando o relógio. Entro nos e-mails e vejo o endereço de subúrbio que meu pai me mandou. Por sorte, perto daqui.Não, não posso estar cogitando em ir até lá.Me troco correndo e boto as lentes castanhas. Desço até o estacionamento e pego o carro horrível.A casa é uma piada. Meu pai só podia estar tirando uma com a minha cara.Os muros são baixos, o portão é de grade azul, toda descascada. A casa é pintada de amarelo ovo, tendo as postas e janelas marrons.Desço do carro e entro, pois o portão sequer estava trancado.Olho para o chão e vejo o tapetinho de SEJA BEM VINDO. Quanta ironia senhor Júlio.Pego a chave e entro na casa.Para meu espanto a casa está toda mobiliada. A decoração é cafona, porém aconchegante.Que saco, que merda estou fazendo aqui?Essa palhaçada tem que ter fim e vai ser agora.Saio da casa no mesmo instante que ouço um carro parando lá fora.É ela.Sabia que não deveria ter vindo até aqui.Ela desce do carro e percebo que ainda está com o uniforme horroroso da BioFort.- Tu tava de saída? - diz já abrindo o portão e entrando.- Tive um imprevisto e tenho que sair.Ela dá uma risada tão gostosa que não consigo entender o porquê dessa demonstração de alegria.- Tu acha mesmo que eu peguei carona e vim até aqui para tu me deixar e sair correndo? Nem pensar guri. Borá entrar e me servir um café.Sou visita.Essa menina deve ser maluca. Não é possível alguém ser tão dada quanto essa Emanuelle.- Você é sempre assim? - Pergunto.- Assim como? - Diz franzindo a testa.- Dada. Você nem me conhece direito e quer entrar na minha casa. E se eu for um maníaco?- Vicente, tu não tem cara de maníaco. E outra coisa, eu gosto de viver a minha vida.- Você está disposta a correr riscos para realizar tal feito?- Totalmente.- Você não me parece ter aquela vida sofrida a qual se referiu ontem.- Eu não deixo as minhas cicatrizes a mostra Vicente, isso serviria para meus inimigos me acertarem. Eu as deixo bem guardadinhas. Elas só servem para eu me lembrar que sou mais forte do que aquilo que me feriu.Agora chega desse papo chato e vamos logo passar um café.Literalmente essa menina é estranha. Bipolar quem sabe?- Eu não sei se tenho café aqui.- Chimarrão serve - diz com um sorriso estampado no rosto.Abro a porta que a pouco acabei de trancar. Mal termino de abrir e ela já está dentro da casa.- Arrumada a tua casa para quem mora sozinho e ainda por cima é homem.- Quê?- Você é homem né? Digo, homem com H maiúsculo. Heterossexual.Homem com cromossomo XY. Você está me entendendo?Não abuse da sua sorte Manu. Não sei o porquê ainda não te dobrei sobre essa mesa. Te faria gozar gritando meu nome e fazendo você mesma responder a essa sua pergunta, gemendo em meu ouvido.- Claro que sou homem!- Ah, bom. Você demorou tanto a responder que achei que tu tava bolando uma resposta defensiva. Mas olha, eu não ligo de ter um amigo gay.- Eu não sou gay, porra!- Mas se for, também não é da minha conta...- Eu já falei que não dou a bunda - falo com o tom de voz um pouco mais alto. Espero que agora ela entenda.- Tudo bem, não precisa ficar bravo.- Eu realmente tenho que sair. Se você não se importar...- Eu me importo sim - diz. - Vim direto da fábrica para cá somente para ver como tu estava e porque não foi trabalhar hoje, e não vou embora sem tomar um café, saber as minhas respostas e te contar as novidades.- Estou ótimo e faltei porque perdi hora. Eu não sei fazer café. Agora pode falar sua novidade.- Como assim você não sabe fazer café?Sério mesmo que de tudo o que eu falei ela só prestou atenção nisso?Tenho certeza que ela é uma espiã do meu pai. Uma pessoa em sã consciência não pode ser desse jeito.- Nunca me interessei em aprender.- Pois agora tu vai aprender - fala já indo em direção a cozinha.Onde fui amarrar meu jegue? Com tantas mulheres naquela fábrica, justo essa, gruda em mim dessa forma.Não posso negar que ela é uma garota bem bonita e atraente. Os cabelos loiros com a pele branquinha - pelo menos eu acho que é branquinha, pois nunca vi mais do que meio braço e o pescoço -, contrastam bem. Aposto que ela deve ser toda rosadinha.- Vicente tu não vai vir aprender? - grita da cozinha. - A água já ferveu.- Já estou indo.Só esse sotaque arrastado que a estraga. De 0 a 10, dou um 8 a ela.- Pode me dizer qual a novidade que você veio me contar?- Novidades. - Me corrige. - São duas.- Pois então fale.- Vou começar com a ruim. Amanhã a gente começa trabalhar a noite.Lá a gente trabalha cinco dias em cada período.- Mas começar a trabalhar a noite numa sexta feira?- Eu também me fiz essa pergunta algumas vezes. Porém devemos essa proeza ao Bernardo. Aquele moleque não sabe fazer nada direito. Onde já se viu querer que os encarregados façam uma escala dessas? Era mais fácil fazer por mês, mas não, o senhor sei-de-tudo quis fazer assim.- Você não gosta mesmo desse Bernardo não é?- Olha Vi, posso te chamar assim né?Faço que sim com a cabeça.- Eu não digo que o odeio, pois é esse emprego que coloca a comida na mesa da minha casa. Porém por culpa dele estou fadada a trabalhar para sempre nessa empresa. Meu sonho mesmo era me formar advogada para poder dar uma vida melhor aos meus pais.- Você já procurou outro emprego?- Já sim, mas nenhum me paga tão bem quanto esse.- Então o Bernardo não é tão ruim.- Não. - Ela volta a gargalhar. - Ele é péssimo. Eu quero ser advogada.- O café está pronto? - digo querendo desviar o foco.- Falta só adoçar. Aposto que colocar açúcar na sua xícara você sabe por.- Sei de várias coisas para se fazer na cozinha...- O quê? - Me olha assustada.- Sei fazer macarrão - desconverso.- Por um momento achei sua frase pervertida. - Termina a frase já gargalhando.Adoçamos cada um o seu café. Até que esse não fica tão atrás do café da Marli.- Qual a segunda novidade?- Tu acredita em destino ou coincidência?- Acredito que somos nós quem faz nosso próprio destino.- Então o seu destino se cruzou com o meu.- Não estou entendendo.- Amanhã estou de mudança do sítio para a cidade. E coincidentemente vou morar aqui na sua rua.Engasgo com o café que tenho na boca.- Calma, guri. Não precisa ficar tão emocionado. Amanhã de dia virei de mala e cuia para cá.- O que aconteceu para você terem que sair do sítio?- Lá fica muito longe para nós. Tanto para eu ir trabalhar quanto para minha mãe levar meu pai para o médico. Daí decidimos vir para a cidade.- Não sei nem o que dizer.- Diga apenas que está feliz. Como sempre estaremos no mesmo turno, acabei de pensar aqui com meus botões, que podemos ir trabalhar juntos todos os dias. Aí a gente racha a gasola.Tem dedo do seu Júlio com certeza. Emanuelle é contratada dele para me atormentar.- Eu não sei se quero continuar trabalhando lá.- Tu tá maluco guri? Com a crise que o Brasil se encontra, não dá para ficar escolhendo serviço, não. Além do mais, com quem me sentarei no horário da janta?- O que mais tem lá é gente para você tricotar.- Rá rá, às vezes você chega a ser engraçado com todo esse mau humor.- E você chega a ser intrometida de tantas perguntas que faz.- E você responde a elas porque quer.Fato! Mais um ponto para ela.- Amanhã tu me ajuda com a mudança?- Não sou a melhor pessoa para te ajudar com trabalhos braçais.- Conta isso para outra - diz apertando meus músculos. - Olha quanto muque aqui.Não tem como não rir das coisas insanas que ela fala.- Vi, não querendo abusar da sua boa vontade, mas já abusando, você pode me levar para casa?- Vou cobrar a corrida.- Eu pago.- Eu cobro caro.- Nada que em 10x não pague.Eu não sei o que essa menina está fazendo comigo, só sei que só pelos meus pensamentos em relação a ela, já percebo que algo está mudando. Não sei se quero ou se estou preparado para isso.- Vamos então, Vi? Você está tão pensativo hoje.- Só estou pensando no compromisso que deixei de ir por culpa sua.- Ah, fala sério, o compromisso nem era tão importante. A pessoa nem te ligou.- Era importante sim.- E mesmo sendo importante tu ficou aqui comigo.- Você está muito convencida.- Só estou sendo realista. Agora vamos, que amanhã cedo estou de volta.Tranco a casa e entro no carro vermelho, carinhosamente apelidado pela Manu de tomate atômico.Chegamos ao sítio rapidamente - tá, não tão rápido -, mas estando com a Manu a gente nem vê o tempo passar.- Até amanhã então guri?- Que horas será a mudança?- Creio que as sete já estarão carregando.- Estarei aqui no horário.Manu desce do carro e dá a volta até a porta do motorista.- Até amanhã então guri.Termina de falar e me beija no rosto.Eu não consigo me lembrar quando foi à última vez que recebi um beijo casto como este.- Até amanhã Manu.
