#CAPÍTULO 4
08/05/2018
Quem diabos inventou o despertador? Olho no relógio que apita sem parar no criado mudo e vejo que ainda são cinco horas.- Que porra é essa?Desligo o despertador e volto a dormir.Acordo com o celular vibrando. Na tela o rosto do meu pai.- Alô.- Você está maluco Bernardo? Era pra você estar aqui na empresa há meia hora.- Pai eu só entro as nove. Ainda não está na hora.- Bernardo, não brinque comigo. Se você não estiver aqui em 15 minutos, pode dar adeus ao seu cargo. Mandei o motorista levar o carro que você vai usar durante esse período. As chaves estão na portaria.- Eu vou com o meu carro.- Bernardo, agora você só tem mais 12 minutos.- Que bost...Ele desliga o telefone antes de eu conseguir terminar a palavra.Arrasto meu corpo para fora da cama e começo a me arrumar. A roupa de presidiário é horrorosa. Preciso urgente solicitar a mudança desse uniforme.Coloco as lentes castanhas. Ainda não acredito que eu vou mesmo fazer isso.Dou risada sozinho ao me ver no espelho. Realmente estou parecendo um Vicente da Silva.Coloco meu Rolex, porém desisto de ir com ele. No mínimo achariam estranho um funcionário do lacre ter um relógio desses, apesar de que nem marca esse povo deve conhecer.Passo o meu perfume de sempre - disso não abro mão nem a pau - pego o boné e saio de casa.Peço ao porteiro para ir pegar meu carro como de costume e o que vejo não é nada engraçado.- Que porra é essa, Rodrigo? Cadê o meu carro?- Senhor, Bernardo. O seu pai passou aqui hoje mais cedo e levou o seu carro. Disse que você ficaria com esse por uns dias...- Você é um imbecil, Rodrigo. Como dá a chave do meu carro para o meu pai?- Ele me disse que você autorizou, então eu pensei...- Você não é pago para pensar em nada ou achar nada.Pego meu celular e ligo para meu pai. No primeiro toque ele atende.- Você está atrasado, Bernardo.- Olha vá à merda tá bom? Cadê o meu carro?- Está em sua garagem.- Se você acha que vou chegar aí com essa lata velha, pode esquecer.Eu estou fora.- Primeiro, que não é uma lata velha, é um Chevette 1.6, 1982.Segundo, se você não chegar aqui em 10 minutos você realmente está fora.Não só da operação quanto da empresa.- Isso não é justo.- A vida nem sempre é justa, Bernardo. O Lúcio estará esperando por você na sessão dos lacres.- Se essa carroça chegar na empresa, em 5 minutos estarei lá.- Não se atrase mais, ou será descontado do seu pagamento.Desligo o telefone e pego as chaves da mão do Rodrigo, que sequer tem a hombridade de olhar em meus olhos.O carro é horroroso, de um vermelho escarlate. O banco é baixo, o volante fica pegando na minha perna, o para brisas é pequeno e eu mal enxergo a rua. O pior de tudo é não ter um rádio Bluetooth. Tem somente um rádio velho que toca CD, porém não MP3.Faço o caminho em menos de 5 minutos. Entro com o carro no minúsculo estacionamento dos funcionários. Se eu tivesse um big foot passaria por cima de todos. Não acho nenhuma vaga perto do setor dos lacres, paro então à quase 700 metros de onde vou "trabalhar".Lúcio já está me esperando na porta do galpão. A cara dele não está nada amigável, mas quer saber? Que se foda! Eu sou o herdeiro dessa merda toda.- Ora, ora, saiba que não toleramos atrasos senhor... - Ele pega meu crachá e lê o nome ridículo que meu pai escolheu com desdém. - Vicente da Silva. Aqui na empresa prezamos muito a pontualidade.- Tive um imprevisto - respondo segurando a vontade de mandá-lo tomar naquele lugar.- Sorte sua que o senhor Júlio não está aqui na empresa ainda, senão esse atraso de quase uma hora seria descontado do seu pagamento.Reprimo a vontade de jogar na cara dele quem sou e dizer que o que ele ganha no mês eu gasto com uma boa foda.- Você poderia me dizer logo o que tenho que fazer? Acredito que nessa empresa como nas demais que trabalhei, tempo seja dinheiro e você está jogando fora um dinheiro que não é teu, ficando aqui de conversa furada.- Vicente, papas na língua é bem vinda aqui. Não vou deixar que volte a falar comigo desta forma. Conquistei meu cargo com muito sacrifício e podando funcionários como você. Sou o encarregado deste setor e você ficarásob minha responsabilidade. Espero que não faça dessa experiência pior do que já imagino. Se você tornar o convívio um inferno, eu serei o próprio capeta. - Sorte sua que não tenho medo de bicho papão.Eu sabia que essa merda não ia dar certo.Anoto no celular o nome desse merdinha que se acha o herdeiro.- Vicente, nós não permitimos o uso de celular em horário de trabalho. Vou te levar até o vestiário onde você terá um armário para guardar essas tralhas e essa réplica de celular de playboy. Você terá que usar touca, óculos de proteção e protetor no ouvido.É Lúcio de Pádua, seus dias nessa empresa estão contados literalmente.Sigo a criatura até o vestiário masculino. Visto o restante da fantasia e saio para o pior dia da minha vida.A sirene toca para o horário do almoço. Minhas mãos já estão vermelhas e dando sinais que verdadeiramente não nasci para ser peão.A marmita de macarrão ao molho de carne moída, nem de longe se parece com as comidas da Marli. Fico pensando no penne ao pesto que deixei na geladeira. Consigo engolir apenas algumas garfadas da comida que elescomem com gosto.A minha frente estão dois jovens rapazes que engolem a comida a fim de sobrar um tempo para mexerem no celular.Lúcio está comendo na ponta da mesa, como se fosse o chefe da casa.Passado 30 minutos do nosso almoço, uma outra sirene toca. Vejo o refeitório enchendo de gente, ou melhor, mulheres.Puxo conversa com o pentelho que está sentado ao meu lado e ele me explica que as meninas preferiram fazer apenas 30 minutos de almoço e saírem mais cedo.- Bah guri, teu perfume é muito cheiroso. Minha mãe comprou um da Jequiti pro meu pai que lembra esse cheiro. Foi nessa revista que tu comprou?Perfume de revista? Essa fábrica só tem maluco! Como assim meu perfume tem cheiro parecido com perfume popular? É exclusivo e um dos mais caros do mundo.- Foi sim - respondo. - Comprei na campanha passada.- Tu me passa o nome dele? As gurias devem cair em cima. Tem cheiro de perfume caro. E olha que tu suou e nem saiu o cheiro ainda.Dá para parar de falar com esse sotaque arrastado? Meu pai deve ter feito isso de propósito.- Eu preciso ver o nome em casa, não me lembro muito bem.Saco o celular e coloco mais uma nota: ver um perfume de revista barata.-E esse celular? Eu queria muito, mas a minha namorada não me deixou comprar. Ela quer casar e disse que se eu gastasse dinheiro comIphone ela largava de mim. Minha guria é muito brava. Parcelou em quantas vezes? Por que acho que consigo pagar escondido dela...Qual a idade desse sujeito afinal? E que idéia absurda é essa de casar?- É réplica, paguei baratinho. Mas me diga, qual tua idade?- Tenho 22 e tu?- Tenho 36 e nem de longe penso em casar, meu negócio é só dar uns pegas.- Uma hora a gente tem que deixar de ser guri e passar a ser homem, e quando isso acontecer quero a minha Cindy ao meu lado.- Mas precisa casar? Não é muito cedo? Por que não só namorar?- Bah, se tu namorar uma guria sem a intenção de se casar com ela está namorando a mulher de outro homem. Não quero mais esperar por algo que tenho certeza.- Te desejo muita sorte... - Ele falou, falou e não falou o nome dele.- Kléberson. Com K.- Espero que a Cindy seja mesmo a mulher da sua vida.- Todo mundo tem a tampa da sua panela, a não ser que tu seja uma frigideira.Riu. Esse menino é maluco, mas fez meu tempo passar. A sirene logo toca me lembrando que há mais sete caminhões para conferir e lacrar.- Droga eu disse que esse carro é uma porcaria!Bato a chave por três vezes e nada dele funcionar. Já estou tentando há uns 5 minutos.Ouço alguém batendo no vidro e me deparo com um anjo.- Tu está com problemas no carro?- Essa porcaria não quer funcionar.- Se tu quiser eu posso tentar te ajudar. Meu nome é Emanuelle, te vi mais cedo no trabalho.- Você por acaso é mecânica?Ela solta uma gargalhada e me sinto obrigado a acompanhá-la.- Capaz guri. Sou mexilona, mas confesso que às vezes dá certo.- Você trabalha no lacre também?- Trabalho sim, queria mesmo trabalhar lá na sede, porém por enquanto estou feliz aqui.Trabalhar na sede? Poderia oferecer a ela o cargo de ser minha secretária, mas não sei o porquê acho que ela é diferente das outras.- O que você queria fazer na sede? Ser secretária? - pergunto na esperança dela dizer sim.Se ela disser que sim, ligo para lá amanhã indicando ela ao cargo. A outra que me desculpe, mas essa loirinha me ganhou.- Capaz guri, queria mesmo ser a advogada da BioFort. Não ria de mim - fala fazendo beicinho ao perceber que um sorriso começa a se formar em meus lábios. - Daqui a alguns anos quem sabe.- Você quer estudar direito?- Na verdade já comecei, porém tive que trancar no oitavo semestre..."Bernardo isso é charme, não caia nessa de mulher sofrida...""Porém ela não sabe quem você é...""Você sabe bem como as mulheres podem ser manipuladoras..."- Trancou a faculdade porquê? - Pergunto contrariando as vozes da minha cabeça.- Tu quer mesmo saber? A história é longa, mas posso te contar no caminho. Moro perto daqui.Ela termina de dizer ao mesmo tempo em que o carro liga, assim que ela dá a partida.- Não te falei que minhas gambiarras dão certo?- Eu não discordei.- Moro a 10 quilômetros daqui. Vou te ensinando o caminho. É um sítio muito bonito.- Só falta me convidar para tomar o chimarrão - digo brincando.- Bah, pois está mais do que convidado.Durante o caminho obtive a ficha toda da Manu. Ela me pediu para que a chamasse assim.Sei que é solteira, filha única, mora com o pai e a mãe, junto com 2 gatos, o pexato e a chaninha.- Manu, mas por que você trancou a faculdade perto do final?- Meu pai teve um aneurisma e não pode mais trabalhar, então eu quem tenho a renda principal de casa. E agora na empresa trabalhamos em turnos e na maioria deles eu estou à noite, por isso tranquei.- Você não tentou conversar na firma para poder ficar só de dia?- Só faltei implorar, porém sequer me deram atenção. Recebi até uma resposta mal criada, de que se eu não estivesse feliz no emprego, poderia pedir as contas e como acabei de te contar, não posso me dar ao luxo de sair de lá.- E quem foi que não te deu autorização?- O idiota do Bernardo Salles, vice-presidente da BioFort.
