#CAPÍTULO 10

16/05/2018

A conversa foi tensa, porém necessária. Contei ao Júlio o que tinha pedido a Laura e ele acabou soltando um elogio acompanhado de um palavrão.
Saio do escritório em direção ao meu apartamento. Tenho que voltar a ser o Vicente e voltar para a casa amarela, no carro vermelho, com a lente castanha e as roupas de segunda. Tenho que descansar para o trabalho
noturno de hoje.
Acordo com o som de Macarena. Odeio essas músicas de despertador.
Por isso as coloco, pois sei que serei obrigado a acordar para desligar o som.
Tomo um banho e me troco colocando aquele saco marrom que chamo de uniforme. Faltam 20 minutos para dar o horário e a Manu ainda não veio me chamar para irmos.
Decido ir então buscar a folgadinha na casa dela.
Paro com o carro em frente a sua casa e Lourdes já sai me atender.
- Manu está aí dona Lourdes?
- Ela já foi trabalhar Vicente.
- Estranho, ela nem passou para me chamar para irmos juntos.
- Ela falou que ia ir de ônibus mesmo, porque tinha uns assuntos para resolver...
- Está acontecendo algo? - Pergunto.
- Não meu filho, se estiver eu não estou sabendo. Manu é tão imprevisível que nunca sei quando as coisas não estão certas.
- Tudo bem, vou indo então. Obrigado.
Mas que diabos está acontecendo com essa garota? Pior ainda, que diabos está acontecendo comigo por me importar com essa garota?
Marli acha que eu posso estar gostando da Emanuelle. Eu acho impossível, uma vez que ela realmente nem faz meu tipo de mulher. Ou será que faz?
Chego a BioFort e encontro o Lúcio já na porta do galpão, com uma prancheta na mão.
- Vicente, o Bernardo quer que fixemos os funcionários em um turno só a partir do mês que vem. Se tu passar na experiência, o que eu duvido, em qual horário pretende ficar?
- A Emanuelle já escolheu?
- Não me diga que já está de quatro pela Manuzinha?
- Vá à merda seu bastardo. Só perguntei porque moramos na mesma rua e eu dou carona a ela.
- Eu não a vi chegando com você.
- Olha Lúcio, eu não te devo satisfações.
- E eu não tenho autorização da Manuzinha para te dar a informação que tu quer.
- Enfie essa informação no seu...
- Fala Vicente, termine de dizer onde devo enfiar a informação?
- Olha Lúcio, enfie essa informação em seu cu.
Ele olha pasmo e diz que vai me dar uma advertência.
- Lúcio, Lúcio, faça o que você bem entender. Aproveite seu tempo aqui na BioFort enquanto você ainda pode.
- Está me ameaçando Vicente... da Silva?
- É mais como um toque Lúcio... de Pádua.
Viro as costas e entro para a fábrica. O pessoal já estava todo alvoroçado falando do tal turno fixo.
- E ai guri - fala Kléberson se aproximando. - Já escolheu seu horário?-
Nem sei se ficarei aqui.
- Como assim? Tá pirado?
- Não gosto desse Lúcio.
- Ninguém gosta. Só o patrão.
- Como assim?
- Ele é os olhos e ouvidos do Bernardo aqui dentro. Lúcio só chegou onde está sendo X-9. Ele não esconde de ninguém que é amigo do patrão.
- Amigo do patrão? - Dou uma risada alta e verdadeira. - Eu nunca vi esse homem na minha vida.
- O quê?
Caralho, falei demais.
- Eu nunca vi esse Bernardo na vida - digo tentando amenizar.
- Nem eu, mas dizem que o guri é um pé no saco.
- Deve ser mesmo. Mas falando nisso, já escolheu seu horário?
- Eu quero ficar só à noite. O adicional noturno vai me ajudar muito.
- Você sabe o horário que a Manu escolheu?
- Tô sentindo um clima nessa pergunta.
- Vá à merda garoto, até você vai me encher o saco agora?
- Eita, calma aí guri, foi só uma brincadeira. O Lúcio não passou no setor das gurias ainda.
- Vamos trabalhar então. Já que o Lúcio é amigo do patrão é melhor ele não ver a gente aqui à toa.
- Verdade.
Trabalho até a hora da janta com a cabeça longe. Às vezes me pego olhando para as minhas mãos calejadas e com marcas de machucado.
Pego meu prato de comida, arroz com carne moída e salada de tomate, e meu suco de acerola e vou me sentar na mesa do canto.
Será que estou mesmo gostando da Manu? Isso só pode ser loucura das grandes. A pobrice deve ter me deixado com um pino a menos na cabeça.
Porra, eu sou o Bernardo Salles. Só saio com as melhores mulheres da cidade, as mais bonitas, gostosas e... prostitutas de luxo.
Deve ser isso, a Manu é diferente de tudo o que conheço. Ela gosta de mim pelo o que sou e não pelo o que tenho.
Mas ela gosta do Vicente e não do Bernardo.
- Guriiiiiiiii - grita Manu do meio do salão vindo em direção a mim.
- Tu viu a novidade?
Termino de engolir a comida que tenho na boca e tomo um gole do suco. Não é possível que eu esteja apaixonado por essa criatura.
- Qual a novidade? - falo dando espaço para ela se sentar ao meu lado.
- Não sei que milagre aconteceu que agora a empresa vai fixar a gente num só horário. Vou poder voltar a fazer a minha faculdade - diz tão rápido que só percebo o que está acontecendo quando sinto um beijo em meu rosto.
Ela, assim como eu, fica tensa após esse gesto de carinho em meio a tanta gente. Kléberson me olha dando uma risada de canto de boca e do outro lado da mesa vejo o Lúcio me fuzilando com os olhos.
Por impulso e por orgulho, acabo surpreendendo a Manu com um beijo na boca. Foi rápido, mas foi o suficientemente bom para ser inesquecível.
Sentir a sua língua na minha me deixou mega excitado.
- Idiota - Manu fala. - Nunca mais me beije, eu não te dei autorização para isso.
Lúcio olha pra mim com um sorriso irônico. Que merda eu fiz?
Manu sai correndo e por instinto vou atrás dela.
Lúcio me grita, mas nesse momento quero mais que ele se foda.
Saio procurando a louca por todo canto. Onde será que ela se meteu?
Foi só um beijo. Será que beijo tão mal assim?
Ouço choro vindo de trás do caminhão que está no fundo do galpão.
- Manu eu...
- Sai daqui Vicente.
- Eu juro que agi por impulso, eu não achei que fosse ficar tão...
- Chateada? É isso que tu ia dizer? Eu deveria me sentir honrada por alguém me beijar? Afinal, nem seu tipo eu sou, não é?
- Manu, pare com isso! Que teatro todo foi esse?
- Vai se catar guri. Nem te devo satisfações.
- Então por que chorou?
- Porque tu não sabe nem beijar - gagueja.
Levanto-a do chão e a abraço. Ela fica relutante mais acaba se aninhando no meu peito.
- O que você está fazendo comigo Manu?
Ela levanta os olhos, que estão brilhantes devido à umidade das lágrimas, e fica com uma cara de quem não entendeu minha pergunta.
- Você entendeu bem o que perguntei maluquinha.
- Olha guri, eu não posso responder a tua pergunta, pois nem eu sei o que está acontecendo comigo. Depois que o... bem, depois que o Marcelo me largou, nunca mais senti borboletas no estômago por mais ninguém. Isso até conhecer o dono do tomate atômico.
- Se você está tão confusa quanto eu, por que saiu correndo daquele jeito?
- Estou com medo - sussurra.
- De mim? - pergunto.
- De ser abandonada de novo - fala escondendo o rosto.
Abraço-a mais forte. Não tenho palavras para poder a confortar nesse momento.
- Que linda cena - alguém fala escondido pela penumbra. - Agora vamos voltar a trabalhar?
A voz do Lúcio é inconfundível. Como pude dar tanto "poder" para esse homem aqui dentro?
- Já estamos indo - digo.
- É proibido fica se pegando aqui dentro da empresa, senhor Vicente.
Acredito que tu tenha lido as regras quando foi contratado.
- Eu sei de cor todos os 37 artigos do regimento interno dessa empresa Lúcio. Inclusive sei que você está infligindo a regra numero 17, que diz que o encarregado não é responsável pelos funcionários durante o horário de descanso, ficando estes, livres para cumprirem o horário como desejarem.
- Essa regra nem existe - grita.
- Quer apostar? - rebato.
- Se ela não existir, como sei que não existe, quero que amanhã mesmo tu peça a conta - fala com ar de superioridade e confiança.
- Eu aceito Lúcio. - Manu olha pra mim com cara de assustada. - Porém se eu estiver certo, quero que você trabalhe no meu lugar por 10 dias.
- Como? - pergunta.
- Isso mesmo. Se você estiver certo eu peço a conta amanhã. Agora se eu estiver certo, você trabalha nos lacres para mim por 10 dias. Que será mamata para você já que estamos a noite. Então serão apenas 5 noites.
- Eu topo - diz estendendo a mão.
- Perfeito - falo olhando bem fundo em seus olhos e apertando a sua mão estendida.
Manu parece não acreditar no que acabou de ver. Eu quem fiz essa porcaria de regimento. Essa regra eu fiz especialmente para mim, pois não queria ninguém me enchendo o saco enquanto comia "meus lanchinhos" na minha sala.
- Quem vai buscar o regimento? - Lúcio pergunta.
- Acho que a Manu é a pessoa indicada para esse serviço.
Ela sai de perto da gente e corre para buscar o bendito livreto com as regras, idiotas eu confesso, mas que se tornaram úteis hoje.
- Está preparado para passar fome guri? - Lúcio fala ao ver a Emanuelle vindo com o livro em mãos.
- Ao contrario de você Lúcio, eu já nasci pronto. Já estou até sentindo as mãos mais leves só em pensar na folga que elas terão.
- Toma aqui essa porcaria - fala entregando o regimento ao Lúcio.
- Espero que saibam o que estão fazendo. Essa competição de quem late mais alto é ridícula.
- Calma Manuzinha, esse Vicente não vai mais atormentar você a partir de amanhã. Eu já fiquei sabendo que você veio aqui hoje pedir para que te trocassem de lugar, pois não estava se dando com esse imbecil.
Caralho, como me esqueci disso? A Manu vai ter que me explicar essa história direitinho.
- Vai te catar Lúcio, quem te falou uma barbaridade dessas? - responde sem graça.
- Manuzinha, eu tenho informantes lá dentro. A Laura me falou tudo.
- Vamos acabar com essa conversa fiada. - Interrompo o assunto. -
E abre logo essa porcaria aí.
Menos de um minuto depois, Lúcio está rasgando as normas e soltando palavrões.
- Não é possível - grita. - Quem fez essa porcaria de artigo?
- Lúcio, trato é trato.
- Te dei minha palavra seu verme - vocifera. - Mas você não perde por esperar.
Ele sai pisando duro e me deixa a sós com a Manu, que está assustada pela atitude do Lúcio.
- Guri, como tu sabia dessa regra esdrúxula?
Dou risada da palavra que ela usou. Embora exista, dessa vez, não é algo que a gente ouve todo dia.
- Sou um funcionário aplicado Manu. Eu estudo sempre a empresa em que vou trabalhar.
- Sei...
- É sério. Agora quero saber o porquê você veio pedir para trocar de setor. É por minha causa?
- Você quer a verdade verdadeira?
- Eu sempre quero a verdade Manu.
- Eu estou gostando de tu Vicente, e não sei o porquê tenho um mau pressentimento quanto a esse sentimento.
Manu gosta de mim? Isso só pode ser alguma pegadinha do destino.
- Você não vai dizer nada? - Me pergunta com um tom de voz ameno.-
Manu, eu também estou nutrindo sentimentos por você e isso também me assusta. E não digo por você não fazer o meu tipo, digo, pois
você é o meu tipo perfeito.
- O que faremos agora Vicente?
- Ficaremos juntos.
- E se a gente não der certo? - Fala com receio nos olhos.
- Quando duas pessoas realmente se gostam, elas sempre darão um jeito de dar certo. Não importa o quão difícil seja - falo mais afirmando a mim mesmo do que dando certeza a ela.
- Então eu aceito! - Diz do nada.
- Aceita? - Indago sem entender.
- Sim eu aceito te namorar guri.
Dou um beijo na minha maluquinha sem me importar com o barulho da sirene avisando que o horário de janta havia acabado.
Nesse momento havia somente Emanuelle e eu.

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